15 fevereiro, 2011

RÚSSIA & MONGÓLIA IX

"20h00, 10 de Outubro de 2010, na pousada em Ulaanbaatar

Sanbainõ

Os últimos dias não trouxeram muito de novo. Contava com alguma aventura e peripécias a tentar arranjar boleia entre Kharkhorin e Tsetserleg, mas logo de manhã bem cedo enquanto tomava o pequeno almoço, um senhor entra no café e após uma curta conversa já tinha boleia! Melhor ainda, antes de irmos a Tsetserleg, ele queria visitar uns centros arqueológicos com evidencias da presença Turca na região da Mongólia.


Um curioso senhor sem dúvida. Quando lhe disse que era engenheiro de telecomunicações, perguntou-me se eu sabia alguma coisa de comunicação trans-cósmica. Apresentou-se como investigador por conta própria sobre a história da espécie humana e sobre a teoria da grande unificação. Não parou de falar durante a viagem toda sobre como a equipa dele estava prestes a fazer uma grande descoberta, que iam ganhar o premio Nobel, e que a Mongólia ia ser a próxima potência Mundial revolucionando todas as tecnologias actuais! Segundo ele, isto acontecerá na Mongólia pois aqui as pessoas convivem de forma harmoniosa com a natureza e por esse motivo os seus cientistas conseguem ser mais iluminados. Sem fazer grandes comentários, lá fui ouvindo incrédulo. Sinceramente não percebi bem a história dele. Ele parecia seriamente envolvido em tudo aquilo que dizia, mas tudo demasiado bom para ser verdade. Fico à espera de noticias sobre um próximo prémio Nobel da ciência para a Mongólia!


Em Tsetserleg, encontrei uma pequena e calma cidade entre montanhas, e rapidamente fiz uma visita. Os estudantes da escola secundária estavam cá fora a apanhar lixo, uma actividade tipo “Limpar Portugal”. Uma iniciativa bem importante na Mongólia. De facto um povo que ainda mal se habituou a produtos descartáveis como embalagens, ainda não se preocupa em manter o lixo arrumado. Até mesmo dentro das suas próprias tendas, tudo é atirado para o chão. Comprei e ofereci uns pequenos chocolates e fiquei de boca aberta a ver os papéis a cair no chão! Isto aconteceu com todas as famílias sem excepção.



Depois de Tsetserleg, mais uma viagem numa carrinha sobre-lotada. Desta vez foram só algumas horas até Ulaanbaatar e não custou muito. No final da viagem, senti uns pingos de água na minha cabeça e o tecto da carrinha estava limpo. Eram flocos de neve que voavam pela janela dentro! Penso que foi o primeiro nevão aqui na capital. Não foi suficiente para deixar a cidade branquinha mas marcou o início do Inverno. De facto, a cidade parece já estar meia adormecida, com os museus e serviços já em horários reduzidos.


Passei os últimos dois dias a explorar uma cidade muito moderna. É estranho constatar uma realidade tão oposta do resto do país. Ulaanbaatar parece ser a única cidade neste país enorme e todo o desenvolvimento se concentra aqui. No primeiro dia visitei os museus, os templos e todas as outras atracções. No segundo dediquei-me às compras. Ficou por assistir a um evento desportivo das modalidades tradicionais, luta livre, tiro ao arco, e corrida de cavalos. E também a um espectáculo de música e dança tradicionais. Era minha intenção mas no Inverno a agenda é bastante mais reduzida e não encontrei nada.


Agora falta apenas algumas horas para apanhar o avião de regresso a Portugal. Dei a última volta a pé no centro da cidade e assim me despedi dela. Também já preparei a mochila bem cheia com todas as compras que fiz hoje. Enfim, tirando a viagem de regresso, sinto que já terminaram as minhas férias e a minha aventura na Mongólia.


Não posso dizer que correu tudo bem. Em três semanas, acabei por visitar apenas duas regiões da Mongólia, quando normalmente faço visitas bem mais intensivas. Fui surpreendido com o que encontrei e acho que não estava bem preparado. Tal como outros viajantes que encontrei, devia ter planeado melhor uma expedição por todo o país, com mais dias e mais meios. Por outro lado, a Mongólia é tão interessante que nunca deixei de estar entusiasmado. A Mongólia é o país mais selvagem e rural que já visitei. Aqui as tradições mantêm-se verdadeiramente vivas e não são meras recriações turísticas ou históricas. Não é uma visita ao passado pois foi o presente que visitei. Olhando para a capital, não sei por quanto mais tempo se vai manter assim. Aos poucos há cada vez mais imigrantes à procura de melhores condições na cidade. Talvez estivessem melhor na vida calma do campo, mas não cabe a mim sugerir isso, pois só experimentei essas condições por uns poucos dias e vou agora regressar satisfeito para Portugal.

Baiartá"



Filipe Tavares

02 fevereiro, 2011

RÚSSIA & MONGÓLIA VIII

"20h00, 6 de Outubro de 2010, de volta a Kharkhorin na Mongólia Central

Sanbainõ

O meu nome Filipe, tem origem no nome grego Fílipos. É uma composição de filéo e hippos que significam respectivamente “amar com afecto de amizade” e “cavalo”. Ou seja o meu nome significa “aquele que ama os cavalos”. Como prova da minha amizade, até hoje tenho deixado os cavalos em paz. Por um lado admiro a arte da cavalaria, mas por outro não me parece muito correcto controlar um animal como se fosse uma máquina. No entanto aqui na Mongólia onde existem 13 vezes mais cavalos do que pessoas, e onde a tradição da cavalaria persiste por todo o lado, é difícil não me deixar contagiar.


Um pouco por acaso encontrei em Kharkhorin quem organizasse expedições a cavalo mesmo para inexperientes como eu. Também aqui perto desta antiga capital encontra-se Tovkhon Khiid, um histórico templo budista curiosamente escondido nas montanhas. A sua localização remota torna-se ideal para uma expedição de 5 dias a cavalo, tal como uma peregrinação religiosa. Não demorei muito tempo a me decidir embarcar nessa aventura. Pouco depois duas francesas aproveitaram e juntaram-se a mim e ao meu guia para os 2 primeiros dias de viagem.


No estábulo escolheram 3 cavalos calmos fáceis de controlar, um cavalo para levar a carga, e outro para o guia. O primeiro contacto é muito importante. Se o cavalo se aperceber que o cavaleiro é um principiante e não sabe o que faz, o cavalo vai ignora-lo até o fim da viagem. Acho que falhei esse primeiro contacto. Apesar de ter algum controlo, o meu cavalo obedecia essencialmente aos comandos do nosso guia. Este teimava em apressar os cavalos contra as indicações do meu corpo cansado e desconfortável das horas seguidas a trote.


As viagens foram longas e exaustivas mas a recompensa superou o esforço. Ao longo de um rio, encontramos vastas paisagens das estepes povoadas pelas tendas de famílias nómadas e os seus animais. À noite mais uma oportunidade para conviver com os locais e experimentar o seu modo de vida. Mas o mais importante foi mesmo o contacto com os cavalos. É impossível não ficar encantado com estes animais.


Ao final do segundo dia, as francesas encontram-se com a sua boleia. Fico só eu e o guia para subirmos a montanha e finalmente chegar ao templo. De manhã o meu guia troca o meu cavalo por um dos delas. Eu que estava a ganhar afeição pelo meu, não gostei muito da ideia ao princípio. Mas mal monto o novo cavalo, senti-me um verdadeiro cavaleiro. O meu novo cavalo era completamente obediente aos meus pedidos. Não necessariamente melhor que o anterior, talvez apenas nos entendêssemos melhor. O meu cansaço não permitia acompanhar o ritmo normal do meu guia, e como me estava a safar bem sozinho, ele acabou por me deixar para trás à minha vontade. A experiência passou para outro nível então. É difícil descrever a minha satisfação.


Lá em cima das montanhas e no meio de uma floresta, encontrei um interessante templo budista ocupado apenas por alguns monges. O budismo instalou-se na Mongólia no século XVI quando um dos descendentes de Chinggis Khaan conheceu o líder Tibetano e se converteu. Por todo o lado foram construidos mosteiros e templos e o Budismo tornou-se a religião principal da Mongólia. Um dos grandes nomes do budismo Mongol foi Zanabazar que além de ter sido um grande líder espiritual, foi também um grande artista, principalmente como escultor. A sua herança encontra-se em mosteiros e museus por toda a Mongólia.


O templo que visitei foi fundado em 1653 precisamente por Zanabazar onde viveu, trabalhou, e meditou durante 30 anos. Daí a sua importância como centro de peregrinação. Tal como todos os outros, o templo foi destruido pelo governo comunista em 1937. Trinta mil monges foram massacrados na altura e outros milhares foram enviados para campos de trabalho na Sibéria. O Budismo e todas as outras religiões minoritárias reduziram-se ao secretismo. Alguns dos tesouros dos templos foram enterrados ou guardados pelos crentes mesmo correndo o perigo de serem descobertos. Só em 1990 com o nascer da democracia, a liberdade de religião foi recuperada. Os mosteiros e os templos foram reconstruidos, também por razões históricas. Pois depois de 2 gerações educadas como ateístas, a prática do Budismo hoje está ainda longe de ser o que foi outrora.


O regresso foi feito pelo mesmo caminho sempre de uma forma independente. O meu guia parecia satisfeito por chegar mais rapidamente ao destino e descansar na tenda. Partilhei o prazer de cavalgar nas estepes com uma dificuldade física crescente. Sem água a partir do terceiro dia, tive que satisfazer a sede apenas com o chá de leite das famílias nómadas. A comida também não era a mais variada e nem sempre a mais saborosa. Foi com grande satisfação que completei a minha expedição. De volta à cidade é tempo de recuperar forças e algum conforto.


Já não me resta agora muitos dias. Antes de regressar à capital vou tentar arranjar boleia até a próxima cidade de Tsetserleg, uma das mais bonitas capitais das províncias da Mongólia."



Filipe Tavares


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