19 janeiro, 2011

RÚSSIA & MONGÓLIA VII

"22h00, 1 de Outubro de 2010, em Kharkhorin na Mongólia Central

Sanbainõ

Depois de uma longa viagem, mais uma vez sabe bem voltar a uma cidade e encontrar uma refeição diferente, mesmo que seja tão simples como uma omelete acompanhada de um bom pão.


Depois de visitar o parque nacional Altai Tavan Bogd, fiquei num impasse sobre o que fazer a seguir. O único transporte público disponível levava-me por uma estrada de terra batida pelo sul da Mongólia até Ulaanbaatar, seguindo as cidades principais e longe de todas as atracções naturais.


O ideal seria ter um transporte próprio aqui na Mongólia. Alugar um jipe e respectivo condutor, é muito dispendioso especialmente para um viajante sozinho. Um cavalo é o meio de transporte tradicional da Mongólia, e muitas vezes ainda o mais eficiente nas montanhas e rios das Estepes. Muitos compram um cavalo para fazer a travessia mas eu não tenho nenhuma experiência de cavaleiro e seria uma tentativa desastrosa. Uma bicicleta não seria uma opção má de todo mas muito limitada perante os 1600Km que me separavam da capital e os difíceis caminhos de terra pelas montanhas. Com uma mota já conseguia ter uma boa autonomia e é um meio de transporte que tem substituído aos poucos os tradicionais cavalos aqui na Mongólia. Há alguns anos que uns modelos Russos dominam as duras condições dos caminhos e estradas da Mongólia. Embora recentemente se encontre também muitos modelos chineses que apesar de terem bom aspecto, fazem torcer os narizes dos Mongóis quando questionados sobre a sua qualidade. Os preços são atractivos e comprar uma mota é tão simples como ir ao mercado e pagar. No final na capital também não seria difícil vender. Apesar de não ter quase nenhuma experiência com motas, a ideia foi-me entusiasmando cada vez mais ao ponto de estar prestes a fechar negocio com um vendedor. Mas ponderando um pouco melhor e prestando bem atenção a todos os sinais, tornou-se óbvio para mim que não estava a fazer um bom negocio e que nunca conseguiria um em tempo útil. O mais certo seria gastar uma boa quantia numa mota que não chegaria ao fim da viagem. Para a ideia funcionar, teria que ser entendido em motas, na língua e costumes locais.


Mesmo perante todas as dificuldades não desisti de continuar a explorar a região enquanto regressava à capital por caminhos menos comuns. Fui para a estrada e com três boleias diferentes, consegui chegar à vila de Tsagaanuur, próxima da fronteira com a Rússia e totalmente povoada por Cazaques. Na última boleia fui o nono passageiro num carro de cinco. À chegada os outros passageiros foram bem recebidos na casa dos seus familiares e eu ainda todo torcido fui convidado a entrar e comer com eles. Tinha assim encontrado o meu abrigo para a noite. Apesar de todo o entusiasmo presente dentro daquela tenda, a comunicação era quase impossível. Passado algum tempo surge uma nova convidada, uma jovem professora com o seu bebé ao colo, a única pessoa da vila que falava Inglês. Agora com tradução, expliquei as minhas intenções em prosseguir viagem. Após muita discussão entre eles, a professora perguntou-me se eu sabia andar de cavalo. É que podiam-me levar de mota até um certo ponto mas depois havia um grande rio que só seria atravessado de cavalo. Foi nessa altura que decidi voltar para trás e regressar à capital.


Ainda assim a visita daquela vila foi muito interessante. O cenário fazia lembrar as imagens do Cazaquistão e outros países vizinhos que conhecia dos filmes e televisão. Os mais novos da minha família anfitriã, acompanharam-me numa visita guiada à escola, à mesquita, e à única loja da vila. No recreio da escola ainda deu para jogar basket com vários miúdos. Mesmo com bolas rotas, campos de terra, e tabelas improvisadas, o basket parece ser uma modalidade popular na Mongólia.


De volta à tenda, um banquete era preparado em minha honra. Tanto cozinharam que o jantar só ficou pronto quase à meia noite. Depois de toda esta hospitalidade, tive outro tipo de surpresa quando acordei no dia a seguir. O meu telemóvel pousado ao meu lado tinha sido roubado por alguém daquela família. O encanto da minha experiência naquela casa perdeu-se um pouco, mas tal como aconteceu na minha viagem à Indonésia, eu estava determinado a recuperar o telefone. Fui à escola buscar a professora, voltamos à tenda, fomos à polícia, voltamos à tenda com uma carta de aviso. Todos discutiam entre si, honestamente chocados com o que tinha acontecido e todos procuravam o telemóvel nos esconderijos da tenda. Finalmente acabou por aparecer e antes de me ir embora ainda tirei uma fotografia de família como tinha prometido anteriormente. Quem foi, acho que ninguém sabia na altura.


De volta à cidade, preparei-me para uma viagem de 3 dias de volta à capital. O autocarro era novo e confortável à partida. Mas só para carregar toda a carga dos passageiros foram precisas 3 horas. Após meia hora de viagem, o autocarro para e novos passageiros entram ocupando os escassos espaços livres. O meu bilhete tinha um lugar marcado mas já não era só meu. Não me conseguia mexer apertado por todos os lados. Seria uma experiência interessante se fossem 3 horas e não 3 dias. Eu tentei controlar as minhas emoções. Afinal de contas tinha pago um lugar marcado e depois com toda a naturalidade roubarem o meu espaço. Mas parecia ser o único revoltado naquele autocarro. Todos os outros acomodavam-se à situação e recebiam com amabilidade os novos passageiros. Afinal de contas, num país pobre em que escasseiam recursos, sobrelotar os transportes é a única forma de os manter acessíveis. Todos passam pelo mesmo e faz-se os possíveis para ninguém ficar para trás. Eu tentei convencer-me que se os outros conseguiam aguentar, eu também seria capaz. Mas confesso que foi uma experiência desesperante.


O autocarro foi passeando lentamente o deserto do Gobi que me fez lembrar um pouco as paisagens da Namíbia. Acabei por encurtar a viagem por um dia e aproveitar a passagem perto de Kharkhorin, uma antiga capital do império Mongol.


Nesta cidade encontro algum conforto no café Morin Jim, um ponto de encontro de viajantes e um ponto de partida para expedições a cavalo. Depois de ouvir algumas boas histórias de quem tinha acabado de regressar, e de ter arranjado companhia, acabei por decidir fazer o mesmo. Nos próximos dias vou de cavalo até um remoto mosteiro budista."



Filipe Tavares


PRÓXIMA CRÓNICA: [RÚSSIA & MONGÓLIA VIII]

06 janeiro, 2011

RÚSSIA & MONGÓLIA VI

"22h00, 26 de Setembro de 2010, num Hotel em Olgii

Sanbainõ

Depois de 3 dias nas montanhas, sabe bem voltar à cidade, um banho quente e o toque de roupa lavada.


As montanhas do parque nacional Altai Tavan Bogd no extremo oeste da Mongólia são uma fronteira natural numa encruzilhada de fronteiras entre a China, a Rússia, a Mongólia, e quase o Cazaquistão também que se encontra 70Km mais a oeste. De facto esta região é maioritariamente habitada por Cazaques, a etnia do Cazaquistão, e a sua presença evidencia-se na cultura local.


A viagem pelas montanhas do parque nacional foi feita numa velha carrinha russa. Já viu melhores dias e o arranque ou era feito com o balanço de uma descida ou dando à manivela. No entanto a carrinha e o meu fiel guia cumpriram a sua missão mais uma vez. Sentado no meu banco, vi passar um espectáculo de vastas paisagens, montanhas, rios, lagos, animais, um glaciar, cemitérios, antigas estátuas, e até pinturas rupestres. Mas o melhor mesmo foi o contacto com as famílias nómadas que habitam esta zona.


Durante o longo inverno da Mongólia, todos os campos ficam cobertos de neve. A agricultura é impraticável e só no verão é que surge alguma vegetação que pode ser aproveitada como pasto para criação de animais. No verão, é importante aproveitar todo o pasto existente para o gado engordar e nessa altura as famílias deslocam-se para zonas mais altas. No inverno, abrigam-se em zonas mais baixas e esperam que o Inverno passe. Surgiu assim o estilo de vida nómada dos Mongóis.


Mudando de local 2 a 4 vezes por ano, as famílias não fazem construções definitivas. Abrigam-se em tendas redondas com uma estrutura de madeira e um bom isolamento. Um forno interior alimentado pelas fezes secas dos animais encarrega-se de proteger as famílias de temperaturas que por vezes chegam a ser tão baixas como 50 graus negativos. Um inverno longo e rigoroso significa normalmente grandes perdas para as famílias. Uma primavera prematura com bastante chuva, significa pastos mais ricos para os animais e um ano de fartura.


Nesta altura do ano, tinha algum receio de já não encontrar uma família que nos desse abrigo. Além de não me apetecer dormir numa simples tenda de campismo com temperaturas negativas, era também a primeira oportunidade de conviver de perto com os nómadas. Felizmente assim aconteceu e não será a única vez. À chegada foi-me oferecido o lugar de honra e comida, vários tipos de queijo, manteiga e iogurte. Ao jantar, cabrito cozido e a cabeça do animal pendurada num canto da tenda. Não falando a mesma língua, limitei-me a observar muito calmamente os simples rituais da família que me acolheu.



No segundo dia estacionamos a carrinha ao lado das tendas mais próximas do glaciar da montanha Tavban Bogd, a mais alta da Mongólia que atinge 4374 metros de altitude. Os últimos 17km até o acampamento base do glaciar, tive que os fazer a pé mas valeu a pena. De regresso já de noite, mais um jantar no lugar de honra. Desta vez, um serão mais animado com a presença dos vizinhos e umas aulas de Mongol para o forasteiro. De manhã, aproveitando a boleia da carrinha, transportamos os pertenceres da família alguns quilómetros mais abaixo no sopé da montanha. Foi a última noite deste ano que passaram naquele local.


Não só à noite mas também durante todo o percurso, fui encontrando muitas outras tendas e nómadas a orientar e proteger os seus animais. Todos andam de cavalo e alguns carregam armas. Existem muitos lobos e raposas que atacam os animais. No último dia já de regresso, avistamos um lobo a comer um cordeiro. O meu guia desvia-se do caminho e persegue o lobo. Eu tento tirar uma boa foto, enquanto que ele tenta atropela-lo. Quando desistimos voltamos para trás onde o dono do cordeiro já lamentava a má sorte. Um pouco por todo o lado se encontram carcaças de animais.



Agora de regresso à cidade, pondero o próximo passo. As opções de transporte nesta região são muito limitadas, mas não me apetece regressar à capital já. Os conselhos dos outros viajantes vão no sentido de explorar a região de forma independente e aproveitar a hospitalidade local durante alguns dias."


Filipe Tavares


PRÓXIMA CRÓNICA: [RÚSSIA & MONGÓLIA VII]